As espinhas do peixe que os portugueses tanto gostam podem ser muito mais do que os restos que ficam no prato. No Porto, uma equipa de cientistas procura dar-lhes uma roupagem completamente nova.
Nos dias de grande calor, não nos contentamos com uma bebida fresca ou um belo gelado. De chinelo no pé, quer vamos até à praia ou à piscina, todos gostamos de estender a toalha e apanhar banhos de sol e o protector solar não pode ficar em casa. E se lhe disserem agora que as espinhas de bacalhau o podem proteger dos raios ultravioletas? Ora é isso que está a fazer uma equipa de investigadores da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto.
Por ano, produzem-se milhares de toneladas de espinhas, que costumam ser aproveitadas no fabrico de rações e farinha de peixe. A ideia de valorizar ainda mais as espinhas de bacalhau remonta a 2010, quando a equipa coordenada por Manuela Pintado, da Escola Superior de Biotecnologia do Porto, começou a tentar obter um composto de cálcio a partir de espinhas de bacalhau. Esse composto é a hidroxiapatite e poderia servir, por exemplo, para fabricar próteses ósseas e dentárias.
Agora, utilizando esse mesmo composto, surgiu uma possível nova aplicação: obter um produto que tivesse a capacidade de proteger dos raios ultravioleta (UV).
Antes de mais, uma breve explicação sobre a radiação ultravioleta. Está dividida em três regiões, consoante o seu comprimento de onda: os raios UVC (200-290 nanómetros), os UVB (290-320 nanómetros) e os UVA (320-400 nanómetros). Enquanto a radiação UVC é essencialmente bloqueada pela camada de ozono, na atmosfera superior, isso não acontece com os raios UVB e UVA. Por isso, estes dois tipos de raios ultravioletas podem ser perigosos para a saúde humana, causando grandes danos na pele, como eritemas e queimaduras solares, e cancros de pele a longo prazo.
Os protectores solares são uma das maneiras mais fáceis e eficazes de evitar os problemas na saúde provocados pelas radiações UVA e UVB. Idealmente, devem proteger a pele tanto dos UVA como UVB. E os UVC, tendo em conta que a camada de ozono não tem estado na sua melhor forma? “Este não é um parâmetro muito importante, porque estes raios são bloqueados pela camada de ozono na alta atmosfera. Quase não chegam aqui à superfície da Terra, por isso não é preciso os protectores solares terem efeito com raios UVC”, responde ao PÚBLICO Clara Piccirillo, cientista de materiais na Escola Superior de Biotecnologia do Porto e que está a trabalhar no desenvolvimento destes novos protectores solares.
O que foi feito então para que as espinhas de bacalhau tivessem capacidade de absorção da radiação ultravioleta? “Basicamente, modificámos a composição das espinhas, que foram deixadas numa solução de ferro. Com esse tratamento, o ferro entrou na estrutura das espinhas”, explica Clara Piccirillo. E é o ferro que lhes confere as propriedades de absorção dos raios ultravioletas.
“Depois, as espinhas foram aquecidas a temperaturas elevadas: a 700 graus Celsius. Desta maneira, foram eliminadas todas as partes orgânicas presentes nas espinhas e o que ficou foi a parte mineral”, continua Clara Piccirillo.
Restou então o principal material constituinte das espinhas em forma de pó: a hidroxiapatite, que é um fosfato de cálcio. Este pó castanho-avermelhado é, aliás, o principal componente dos ossos humanos e dos animais.
“A hidroxiapatite sozinha não é um produto que pode ser usado como filtro solar, porque não absorve a luz ultravioleta. Mas, introduzindo o ferro, há uma modificação na estrutura. Portanto, o material torna-se um protector solar”, explica a investigadora italiana, há cinco anos em Portugal. “Esse pó é o material-base e pode ser usado de muitas maneiras.”
Uma das maneiras é precisamente desenvolver um creme que funcione como protector solar. Numa primeira fase, este pó de hidroxiapatite foi testado sozinho, em laboratório, e os resultados foram positivos, segundo a investigadora. Posteriormente, o pó foi incorporado num creme e também submetido a testes em laboratório. Consoante a percentagem de pó introduzida, o creme adquiriu um tom mais ou menos castanho-avermelhado.
Mais tarde, o creme com 15% de pó foi testado em 20 pessoas sem problemas de saúde e de pele. Esses resultados foram publicados pela equipa na revistaJournal of Materials Chemistry B, no início de Julho. “Este material mostrou boa absorção a toda a gama de UV”, diz o artigo científico, acrescentando-se que “cremes criados com este material podem ser usados como um protector solar de largo espectro”. “O creme também é fotoestável e não causa irritação ou eritemas em contacto com a pele humana”, lê-se ainda.
Fonte: PUBLICO
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