Eles querem usar saias e cabelos compridos. Elas escolhem cortar os cabelos e vestir só calças. Não dizem que querem ser de um sexo diferente. Insistem que são de um sexo diferente. São crianças com uma perturbação de identidade de género. Casos raros de quem diz estar preso num corpo errado desde sempre. O que fazer com estas crianças? E quando?
Sentem que nasceram com o corpo errado. Não são rapazes que querem ser raparigas. Dizem que são raparigas com pénis. Não são raparigas que querem ser rapazes. Dizem que são rapazes com uma vagina. Nem sempre é possível identificar e diagnosticar uma perturbação de identidade de género na infância ou adolescência. São crianças que muitas vezes acabam por receber um rótulo de Maria-rapaz, "mariquinhas" ou, mesmo, homossexuais. Mas não é a mesma coisa. No mundo da transexualidade lida-se com algo que é muito diferente de orientação sexual: lida-se com a identidade. E a verdade é que quando os transexuais são recebidos pelos especialistas, já na idade adulta, dizem que estão à espera do verdadeiro corpo desde muito cedo. Desde sempre.
"Olá. O meu nome é Josie. Faço anos no dia 16 de Abril. Sou uma rapariga. E tenho um pénis." David Elisco, produtor do documentário Sexo, Mentiras e Género, da National Geographic, conta como conheceu Josie Romero, uma criança com oito anos, do Arizona, Estados Unidos. Foi através de um vídeo caseiro onde se via uma menina loira, sentada numa grande cadeira que lhe deixava os pés soltos a abanar no ar. Josie foi notícia em muitos jornais e programas de televisão como exemplo de uma criança com perturbação de identidade do género e porque está autorizada a iniciar os tratamentos hormonais quando chegar aos 12 anos.
No final do ano passado, os pais de Josie contaram ao mundo a história do seu filho Joey, que aos quatro anos lhes comunicou: "Sou uma rapariga." Primeiro, pensaram que o seu filho era homossexual e pareciam dispostos a aceitar o facto. Alertados pelo pediatra, entraram no conceito da perturbação de identidade do género e identificaram-se. Numa metade do armário da roupa, colocaram artigos para rapaz e na outra metade penduraram coisas de rapariga. A criança não hesitava e escolhia apenas as roupas de menina. Acabaram por aceitar que Joey era Josie.
Assim como foi exemplo o caso de Alex, que, em 2004, quando tinha 13 anos, conseguiu uma autorização do tribunal australiano para iniciar o tratamento hormonal. As notícias falam de uma criança que queria tanto ser rapaz que chegou a usar fraldas na escola só para não ter de utilizar os quartos-de-banho das raparigas. Ou o jovem de 16 anos que este mês obteve, em Espanha, a autorização judicial para fazer a cirurgia de mudança de sexo.
Num documentário de 2007, da cadeia de televisão ABC, a célebre jornalista Barbra Walters apresentou três outros casos de crianças transexuais, com entrevistas às próprias e à família.
De uma forma mais ou menos estridente, todas estas notícias tiveram o mesmo efeito: uma polémica discussão. Uma criança sabe o que está a dizer quando diz que é de um sexo diferente daquele que vemos no seu corpo? E devemos intervir? Como? Quando?
Para quem pensa sobre isto pela primeira vez é fácil cair na confusão. É fácil avançar para a conclusão precipitada de que são homossexuais. Ou, para as famílias, é mais fácil encarar estas manifestações como uma fase - e tentar ignorá-las. Mas é mais complexo do que isso. As crianças com uma perturbação de identidade do género não se caracterizam apenas pela escolha dos brinquedos, das brincadeiras ou das roupas que querem vestir e que, aos olhos do mundo, são do outro sexo. Zélia Figueiredo, especialista na área de sexologia que trabalha com transexuais no Hospital Magalhães Lemos, no Porto, diz que as histórias são todas muito semelhantes. "Quando lhes pedimos para escreverem a história do que está para trás há muitos pontos comuns, tantos que às vezes parecem a mesma história."
"São uns heróis"
Os relatos falam da infância como o marco do início do drama, diz Zélia Figueiredo. Sentem que têm um "defeito de nascença", uma deformação física, sentem repulsa pelo corpo com que nasceram. Sofrem com isso. À medida que crescem, escondem o corpo atrás de coletes que apertam o peito, recusam ir à escola, mutilam-se, deprimem, tentam o suicídio. Não é fácil entender. Não é fácil entendê-las. E, sobretudo, não é fácil ajudá-las.
"São uns heróis", conclui o especialista Pedro de Freitas, do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. O sexólogo que acompanha vários casos de transexuais confirma que um dos traços comuns a muitas histórias é o facto de esta perturbação se manifestar em idades muito jovens e, frequentemente, na infância. Porém, o mais provável é que não tenha sido identificada como tal nessa altura. E tenha sido "abafada" pela presunção de uma mera fase mais arrapazada ou afeminada. Ou, mais tarde, erradamente encarada como uma questão de orientação sexual. "A questão da identidade de género não tem nada a ver com a orientação sexual", avisa Pedro de Freitas.
Nos casos que acompanha conheceu quem, em criança, se recusava a vestir saias ou, do outro lado, quem não queria outra coisa. "O drama começa em casa, depois na escola e acentua-se na puberdade. Uma das coisas mais terríveis para alguém que se sente homem é a menstruação", explica.
Se tudo parece apontar para uma criança ou adolescente com perturbação da identidade de género, o que fazer? "Apoiar. Desde que nos procurem cedo, nós apoiamos cedo. Mas não podemos intervir. Não posso passar uma receita para um tratamento hormonal antes dos 18 anos. É contra a lei." Mas há medidas capazes de minimizar o sofrimento.
Uma das mais importantes é acompanhar e apoiar psicologicamente a família, que também é afectada, e outra será, por exemplo, falar com os professores. Fazer mais do que isso é complicado. "Uma cirurgia irreversível de mudança de sexo numa criança está fora de questão. E também não me parece que alguém com 12 ou 13 anos tenha estrutura psicológica e maturidade para que se possa iniciar um tratamento hormonal", refere Pedro de Freitas.
Quanto aos pais, devem tentar o mais difícil: nem contrariar, nem incentivar, assumindo uma postura neutra. Antes disso, claro, devem procurar ajuda junto de profissionais de saúde.
"Estamos a confundir tudo"
A maioria dos casos de perturbações de identidade do género na infância e adolescência não é notícia. São raparigas e rapazes que se escondem, que gritam no silêncio ou que simplesmente sentem que "algo está errado" mas não sabem o quê. O especialista do Hospital Júlio de Matos não duvida de que estas pessoas nascem com esta perturbação. "Podem é não saber colocar o rótulo ou só tirar a cabeça da areia mais tarde."
"Flip" é o nickname num fórum de discussão numa associação que quer apoiar a juventude lésbica, gay, bissexual ou transgénero e promover a mudança das mentalidades em relação às questões da orientação sexual e identidade de género. "Só comecei verdadeiramente a tentar resolver a minha vida aos 20 anos, quando tomei consciência de que o que sentia era mesmo muito forte e, por mais que me esforçasse, nunca seria feliz tendo um corpo e um papel feminino no mundo", conta. No entanto, os sinais apareceram muito antes dos 20 anos. "Flip" é hoje Filipe mas lembra "a aventura da menina que desde os 3 anos se apresentava aos amigos com um nome masculino".
"Os meus pais faziam-me passar vergonhas incríveis desmascarando-me constantemente", conta.
Jó Bernardo tem 45 anos e prefere dizer que é transgénero [um termo mais abrangente que se aplica a pessoas que fogem dos papéis sociais de género]. Não completou a operação de mudança de sexo mas optou por um tratamento hormonal que lhe mascarou o corpo masculino com que nasceu. Só mais crescido é que terá aprendido a ler os sinais. "Estava tudo lá desde muito cedo. Desde que nasci. Tenho uma fotografia com o meu irmão gémeo em que vejo isso de forma clara. Tínhamos apenas dois anos, estávamos na praia de Santo Amaro de Oeiras, os dois, de mãos dadas, com um balde na mão e o mesmo fato de banho. A diferença é a forma como seguro no balde, com as mãozinhas para a frente, é que eu estou todo penteadinho, é que eu tenho as pernas fechadinhas..."
A forma como se segura um balde na praia não será, seguramente, um factor que entre num diagnóstico clínico de perturbação de identidade de género. Mas Jó sabe que era muito mais do que isso.
Quando se fala em crianças com esta perturbação, Luísa Ramos, psiquiatra no Hospital Conde Ferreira, no Porto, pede muita calma e bom senso. "Hoje vivemos uma grande confusão em relação ao que é o quê. Estamos a confundir tudo. Homossexuais com travestis, com transexuais... questões de identidade com orientações. E o mediatismo destas situações não ajuda a clarificar." A psiquiatra alerta para a ambiguidade que pode existir na definição de uma criança transexual. Chegar até um diagnóstico destes "não demora dois dias ou dois meses", diz. "É preciso uma avaliação longitudinal.
"Só depois dos 18 "
Em Portugal não se fazem intervenções de mudança de sexo em menores", afirma Rui Xavier Vieira, responsável pela comissão da Ordem dos Médicos que elabora os pareceres necessários para a realização de uma cirurgia de reatribuição de sexo, acrescentando que nunca foi apresentado nenhum pedido para um menor.
O especialista não hesita em desaprovar cirurgias irreversíveis "em crianças e adolescentes jovens". Têm de viver "presos" nos seus corpos até aos 18 anos? "Isso é linguagem dos grupos de pressão", responde. "Isto são processos irreversíveis, tudo tem de ser feito com muito cuidado."
Assim, sobre uma eventual intervenção antes da maioridade, o psiquiatra admite: "Isto está tudo em grande mudança. Não tenho nenhuma oposição, mas temos de pensar em formas de abordar essa questão. Podemos, eventualmente, atrasar as alterações da adolescência nesses casos. Temos de ser razoáveis e ponderar os riscos para a saúde dessa pessoa.
"Alguns países já permitem o início do processo de mudança de sexo com um tratamento hormonal a partir dos 16 anos. Em Portugal é impossível. E mesmo em relação às intervenções em adultos, o país tem uma particularidade. "Somos o único país europeu que exige um parecer da Ordem dos Médicos para realizar este processo. Não se trata de nada imposto pela lei mas pela Ordem", constata o especialista do Júlio de Matos.
Sobre a idade mais adequada para intervir Pedro de Freitas tem duas respostas: "Os 16 anos são a idade ideal. Os 18 são a idade legal." Em qualquer caso, é essencial uma avaliação sobre o grau de maturidade da pessoa que está à nossa frente. "Conheço jovens com 16 anos muito maduros e pessoas com 20, 30 ou 40 que são umas crianças."
E é preciso cumprir a lei. É preciso uma avaliação feita por duas entidades independentes que tenham chegado ao mesmo diagnóstico, é preciso apoio psicológico, psicoterapia, iniciar a terapêutica hormonal, fazer um cariótipo (avaliação cromossómica), passar pela chamada prova real de vida, pedir o parecer da Ordem dos Médicos para realizar a cirurgia e, depois de realizada a cirurgia, avançar com uma acção contra o Estado exigindo a mudança de nome e sexo nos documentos de identidade (porque em Portugal não existe uma Lei da Identidade, ao contrário de outros países). Há situações em que, nesta fase final do processo, o tribunal pode ainda pedir uma perícia do Instituto Nacional de Medicina Legal para que se verifique que o sexo no corpo corresponde ao que está a ser reivindicado.
Tudo isto implica um processo que se arrasta por vários anos e que só pode começar aos 18. Enquanto isso, os transexuais esperam. "Não, enquanto isso, desesperam", corrige Pedro de Freitas. O único cirurgião que faz estas mudanças de sexo em Portugal é João Décio Ferreira. Apesar de estar reformado desde 2009, continua a operar no Hospital Santa Maria para atender estes pedidos.
Doença mental
Em Portugal já foram realizadas cerca de 100 operações de mudança de sexo. São cirurgias comparticipadas pelo Estado a 100 por cento uma vez que a Organização Mundial de Saúde incluiu a perturbação de identidade do género na lista de doenças mentais. "Apesar de existirem muitos grupos a exigir que deixe de constar nesta lista porque se trata de uma discriminação, acho que é bom para eles. Se sair da lista, os Estados desobrigam-se de os tratar porque deixa de ser doença. E aí vão ter de ser eles a pagar."
Outra questão: se antes dos 18 anos ninguém pode votar ou fazer algo tão simples como tirar a carta de condução, devemos equacionar atribuir-lhe o "poder" desta decisão tão radical de autodeterminação? Filomena Neto, que coordena o departamento de bioética da Sociedade de Advogados José Pedro Aguiar Branco & Associados, sabe que esta é uma questão difícil onde não existe "preto e branco".
"Julgo que na menoridade uma autorização para iniciar um processo de mudança de sexo teria que passar sempre por uma tutela jurisdicional que verificasse o processo. Não para discutir a opinião dos médicos, mas para assegurar que foram dados todos os passos para proteger aquele menor", defende Filomena Neto, sublinhando, no entanto, que esta "possibilidade legal" só deveria existir a partir dos 16 anos.
"Aos 12 anos, por exemplo, choca-me. Acho que ainda não existem capacidades para essa autodeterminação. Mesmo uma autorização dos representantes legais não deveria ter influência. Teria de se ouvir o próprio. A verdade é que às vezes fazemos as maiores asneiras com as melhores das intenções."
Há muitas perguntas e não há uma só resposta para um território tão ambíguo e complexo. Antes de tomar uma decisão irreversível é imprescindível eliminar essa ambiguidade e complexidade até ao limite do possível. Para que uma mudança destas seja algo tão simples como o caso que Pedro de Freitas lembra sobre uma mudança de sexo iniciada aos 18 anos. "Esta pessoa afirmava que sabia desde os dois anos que era mulher e tinha o corpo errado. Completámos o processo de mudança e hoje é uma mulher fantástica, muito bonita." Ela juraria que sempre foi mulher.
Fonte: Público
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