Um grupo de cientistas conseguiu concretizar com sucesso a primeira transfusão de sangue produzido em laboratório. A solução está longe de poder ser utilizada em larga escala em doentes, mas é um passo importante para a medicina – numa altura em que cada vez mais doenças exigem transfusões regulares.
A investigação, publicada no jornal médico Blood, foi desenvolvida por um grupo de cientistas da Universidade Pierre e Marie Curie, em França, e concretiza um sonho da comunidade médica que soma mais de 50 anos. Luc Douay, responsável pelo trabalho, conseguiu extrair células estaminais hematopoiéticas (que dão origem a todos os tipos de células do sangue) da medula óssea de um dador voluntário e, posteriormente, fez com que estas crescessem em laboratório e se transformassem em glóbulos vermelhos.
Contactada pelo PÚBLICO, a hematologista Maria João Costa, do Hospital de Santa Maria e professora na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, começou por explicar que “para já a descoberta não tem qualquer impacto prático, mas representa um grande avanço para a medicina”.
A equipa francesa “etiquetou” eritrócitos produzidos em laboratório e, depois, injectou-as no mesmo voluntário. Ao todo foram cerca de dez mil milhões de células, o que equivale apenas a dois mililitros de sangue. Ao fim de cinco dias os investigadores verificaram que entre 94% e 100% das células continuavam a circular no corpo do dador.
Ao fim de 26 dias a percentagem situava-se entre os 41 e os 63% – o que corresponde à taxa normal de sobrevivência deste tipo de células. Em termos de função, revelaram-se capazes de transportar oxigénio da mesma forma que as células que já circulavam no dador. Luc Douay, citado pela New Scientist, considera, por isso, que o trabalho representa um grande passo para a investigação médica e que “os resultados são promissores quanto à possibilidade de criar uma reserva ilimitada de sangue”. O cientista recordou que, apesar de o número de dadores de sangue em todo o mundo ter vindo a aumentar, há países com números muito elevados de doenças infecciosas, como é o caso do VIH/sida, onde a concretização deste tipo de transfusão poderia trazer muitas vantagens. Um dos maiores benefícios seria a produção de sangue tipo 0 negativo, conhecido por “dador universal”, por ser compatível com quase toda a população, apesar de só 7% das pessoas terem este grupo sanguíneo.
Como produzir em quantidade suficiente?
No entanto, o grande problema que se coloca à comunidade científica é como produzir a partir das células estaminais sangue em quantidade suficiente para se fazer uma transfusão, já que seriam necessárias 200 vezes a quantidade utilizada no ensaio. Aliás, muitos investigadores têm precisamente tentado sintetizar em laboratório um substituto artificial do sangue para contornarem este problema e para conseguirem um produto de maior durabilidade e que não necessite de refrigeração para poder resistir a situações de catástrofe e para ser utilizado em locais mais remotos.
Mas cria-se outro entrave: um produto artificial, ao contrário do sangue produzido a partir da medula óssea, exigiria muitos mais testes de segurança e demoraria muito até ser aprovado. Nos Estados Unidos uma descoberta já foi rejeitada precisamente pelos efeitos secundários detectados. A solução, segundo alguns investigadores, passa por utilizar células estaminais de embriões e não de adultos, que permitiriam produzir uma maior quantidade de sangue, mas que esbarram igualmente em várias polémicas relacionadas com o uso de embriões em investigações científicas e com o próprio patenteamento das mesmas.
Já em Outubro, uma equipa da Universidade de Edimburgo, Escócia, anunciou que desenvolveu um método para extrair células estaminais adultas da medula óssea e criá-las em laboratório de forma a produzir novas células que actuem como os glóbulos vermelhos. Os mesmos cientistas também estão a investigar a criação de substâncias alternativas semelhantes ao sangue, que possam ser injectadas no corpo para servirem de “rolha” enquanto não é possível a realização de uma transfusão.
Questionada sobre a importância de ter sangue produzido em laboratório em países como Portugal onde a doação é benévola e as reservas, em geral, costumam ter bons níveis, a especialista Maria João Costa sublinha que “é sempre melhor ter um produto fabricado”, visto que o sangue dos dadores “implica muitos estudos em termos de compatibilidade e de doenças virais transmissíveis como as hepatites ou a sida”, que poderiam ser evitados se o produto fosse artificialmente produzido. “Poderá vir a ser um processo mais rápido, mais seguro e mais barato, ainda que não numa primeira fase”, acrescentou.Apesar de a doação de sangue ser gratuita, Portugal não é totalmente auto-suficiente e precisa de comprar alguns componentes de sangue: a importação custa ao país cerca de 70 milhões de euros por ano, sendo que as transfusões apresentam também vários riscos para os doentes, nomeadamente em termos de infecções ou de doenças difíceis de detectar, como é o caso da BSE, conhecida como “doença das vacas loucas”, que seriam potencialmente solucionadas pelo produto artificial.
Fonte: Publico
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