No mercado mundial, as ovas dos ouriços atingem preços altíssimos. O que impede Portugal de avançar? Papéis.
O mar está a poucos metros de nós. Luís Inácio olha para ele, e aconselha: “O melhor é descermos já, porque a maré está a subir e daqui a pouco não conseguimos andar lá em baixo”. Abre a grade que protege a entrada do viveiro, e, cautelosamente, começamos a descer a escada a pique. Lá em baixo, a luz desenha efeitos nas paredes, ilumina algumas zonas, deixa outras na sombra. É aqui o mundo dos ouriços-do-mar.
Luís Inácio e Patrícia Mega Lopes desceram já vezes sem conta a este antigo viveiro de mariscos na Ericeira. Patrícia é bióloga e fez um estudo sobre o crescimento do ouriço-do-mar em viveiro. E ambos acreditam que este pode ser um negócio com muito futuro — basta ver o valor das ovas de ouriço-do-mar no Japão que, segundo Luís Inácio, podem chegar a custar 80 dólares por quilo, ou até mais no caso dos ouriços mais raros e apreciados. Mas as coisas não são fáceis, e o negócio ainda não arrancou por causa de entraves burocráticos ligados ao licenciamento.
“Queremos produzir em massa e comercializar”, explicam. “Já temos contactos com a Itália, a França, o Japão, e até já temos dois investidores interessados, o problema é que em Portugal não existe legislação específica sobre este produto, e isso complica muito as coisas”. Para já, vão prosseguindo as experiências neste viveiro cedido pela Junta de Freguesia da Ericeira na zona conhecida como “Furnas”, o tapete rochoso ligado ao antigo Forte do século XVII, onde existem viveiros que pertenceram a fábricas de conserva de pescado. Mais tarde, conta Patrícia na sua tese, foram usados pelos restaurantes locais como armazéns, onde mantinham as lagostas, ameijoas, sapateiras, lavagantes e santolas vivos até à altura de serem consumidos.
Lá em baixo, a água ainda não subiu muito. Equilibrando-nos em cima de traves que servem de passadiços, conseguimos aproximar-nos desses animais misteriosos, com o corpo feito de espinhos. Muitos deles são roxos, mas há também alguns verdes e de vários outros tons. “O mais cobiçado, com maior valor comercial, é o laranja”, explica Luís, que cresceu a ver os mergulhadores trazerem ouriços-do-mar das águas da Ericeira — aliás, o nome da vila virá precisamente da palavra Ouriceira, por causa dessa abundância de ouriços que aqui existia. Mas com o excesso de apanha desregulada, eles foram desaparecendo, e hoje não é fácil encontrá-los. Por isso, a ideia de os criar em viveiro, fazendo a reprodução in vitro — a partir daí, os ouriços “reproduzem-se aos milhões”, garantem os dois jovens.
Patrícia entra dentro de água, que lhe chega aos tornozelos, e apanha com delicadeza alguns ouriços, que nos apresenta nas mãos abertas. Os espinhos mexem-se quase imperceptivelmente, e pela primeira vez tomamos consciência de que esta carapaça espinhosa é um ser vivo. O que é comestível num ouriço-do-mar — e não apenas comestível, mas com um intenso e delicioso sabor a mar — é aquilo a que habitualmente se chama “ovas” e cujo nome exacto é “gónadas”, os órgãos sexuais, masculino e feminino (não é possível distinguir a olho nu os machos das fêmeas).
A fecundação é feita no exterior: na altura da reprodução, as fêmeas libertam os óvulos para o mar, e os machos libertam o esperma, que é atraído para dentro dos óvulos, dando origem a um ovo, que vai evoluir para uma larva nadadora, que por sua vez se transforma num ouriço-do-mar. Nessa fase, fixa-se a uma rocha e desenvolve a carapaça dura e os espinhos que lhe permitem movimentar-se. Mas, embora pareça que os ouriços-do-mar são quase só compostos por essas gónadas cor-de-laranja, a verdade é que são seres bem mais complexos que têm, entre outras coisas, intestinos, boca e dentes (a que se chama “lanterna de Aristóteles”), através dos quais ingerem vários tipos de alimentos, mas preferencialmente algas (na experiência realizada por Patrícia, para um estudo comparativo, parte deles foram alimentados a milho, por exemplo).
Abrimos um dos animais e tentamos retirar as gónadas sem as desfazer. A tarefa não é fácil, mas mesmo tratando-se de um ouriço pequeno, o tal sabor a mar enche-nos a boca. Patrícia explica que as gónadas dos machos são geralmente mais esbranquiçadas, e que as das fêmeas têm um tom mais alaranjado.
Ouriços no menu
Patrícia e Luís Inácio andavam há já bastante tempo a pensar na melhor forma de desenvolver o seu projecto de reprodução de ouriços-do-mar em viveiro quando ouviram falar do Endògenos, uma iniciativa lançada pelo empresário Nuno Nobre para revitalizar produtos que existem em Portugal mas que são pouco aproveitados na gastronomia nacional. E um dos produtos na lista do Endògenos era precisamente o ouriço-do-mar.
O jantar dedicado à iguaria aconteceu no início do ano, em Cascais, no restaurante 100 Vícios, do chefAntónio Alexandre, que idealizou o menu, onde o ouriço-do-mar estava presente do primeiro ao último prato. Para começar, foi servido um Ouriço Royal, bebida feita com vinho do Porto e ouriço; houve também pastéis de ouriço, batata doce e chouriço, um prato com garoupa e ouriço, outro em que o sabor do ouriço surgia com sapateira, algas, sésamo, natas e ovas de salmão. António Alexandre criou ainda um ravioli de ouriço e lavagante servido num caldo, um prato de pampo com manteiga de ouriço, outro de codorniz recheada com creme de queijo e ouriço. E, como estava prometido, até a sobremesa incluía ouriço — neste caso num leite-creme.
A iniciativa pretendia mostrar as muitas maneiras como o ouriço pode ser usado — indo muito mais além das formas tradicionais de preparar este produto que a população da Ericeira continua a usar, do simples ouriço grelhado, ao arroz de ouriços-do-mar, que ainda se pode encontrar pelo menos num restaurante da vila, o Sul.
Depois deste jantar, Nuno Nobre conheceu o projecto de Luís Inácio e Patrícia, e está agora a colaborar com a Câmara de Mafra e a Junta de Freguesia da Ericeira para “tornar o ouriço-do-mar um ícone da região”. A partir de Setembro vai ouvir-se falar de ouriço-do-mar, com uma série de iniciativas que vão envolver os restaurantes locais, sem os quais este TRABALHO não é possível.
É preciso que quem visita a Ericeira volte e encontrar ouriço-do-mar servido em pratos variados. “Queremos torná-lo mais contemporâneo e mostrar que pode ser versátil”, explica Nuno. “Neste momento há pouca coisa a fazer-se com ouriços-do-mar”, lamenta. Dos planos do criador do projecto Endògenos faz ainda parte uma Festa do Ouriço-do-Mar, que deverá acontecer em Janeiro ou Abril do próximo ano.
Entretanto, Luís Inácio e Patrícia esperam que os obstáculos burocráticos que têm impedido o início da produção de ouriços-do-mar em viveiro sejam ultrapassados. “Vemos aqui em Portugal latas com ovas de ouriço vindas de Espanha e vendidas a preços altíssimos”, diz Luís. E, acrescenta, apesar de o número de ouriços apanhados no mar estar em queda acentuada, muitos dos que são apanhados em Portugal são vendidos para Espanha, que depois os comercializa. Mas o verdadeiro potencial deste negócio está no mercado externo. O grande consumidor mundial é o Japão, que já importa perto de 97% do total de ouriços-do-mar comercializados no mundo. O preço tem vindo sempre a subir, ao ritmo da queda abrupta da quantidade de ouriços disponíveis. Segundo Luís Inácio, há já vários países, nomeadamente a Irlanda, a apostar fortemente na aquacultura com ouriços. Portugal, acredita, tem condições óptimas para o fazer. “É o nosso caviar, temos que apostar nele.”
Fonte: Publico